Foto: Arquivo pessoal - 5do12 |
Quando fui convidada pra
escrever um guest post aqui pensei que seria sobre qualquer coisa que
envolvesse feminismo, até que surgiu a proposta de falar de como cheguei ao
mundo do Parto Humanizado. Depois de nem chorar muito, só tremer, vi que não ia
ter como dissociar uma coisa da outra. Simplesmente porque na minha vida o
movimento nunca foi o de encontrar como o feminismo se encaixava dentro do
cenário do Parto Humanizado e sim, no que eu, enquanto feminista, ia querer trabalhar
pelo resto da vida.
Meu nome é Bárbara, sou
alagoana, nordestina e divido a vida entre ser professora universitária,
mestranda, enfermeira obstetra (que prefere ser chamada de parteira) e
militante anarquista. Eu sou uma pessoa que, particularmente, você verá sorrir
quando falar de empoderamento, quando relatar algum caso de mulher lacrando e
fazendo barulho pra ter um parto respeitoso, vendo fotos de nenês bem nascidos
e indo direto pros braços de sua mãe e de apoio mútuo entre mulheres... Mas tem
uma coisa engraçada quando você me perguntar se eu sempre quis ser enfermeira
obstetra. Eu direi que não.
Nunca fui muito chegada às
rotinas hospitalares principalmente pela hierarquização imposta simbolicamente
dentro dos hospitais. Nessas instituições podemos ver uma profissão majoritariamente
“masculina” reproduzindo poder sobre outras profissões majoritariamente
“femininas”. Desde quando fui privilegiada pelo ingresso na universidade, aos
16 anos, o contato com o feminismo e o movimento estudantil me deixaram
inclinada a exercer minha profissão como função social, o que – por algum
motivo – me levou a pensar que a saída era sempre a Saúde Pública. Não tô
dizendo que estava certa, mas pensei assim.
Por um tempo foquei na Saúde
Coletiva, na Educação Popular em Saúde, pensando em construir linhas de
pesquisas e oportunidades populares de atuação só e somente só nesse campo. Mas
esses mesmos motivos, que me fizeram criar apego pelo curso, foram os
disparadores de grande frustração quando cheguei ao último ano de curso e me
via quase obrigada a levantar da cama e atravessar a cidade pra chegar ao posto
de saúde, sem vontade alguma de fazer aquilo. Não pensei em feminismo, em
classismo, nada.
Não queria estar ali, tinha
toda a consciência das relações de trabalho, exploração do trabalhador e
desvios na saúde pública, mas não queria. Naquele cenário eu só gostava do dia
de pré-natal, de fazer qualquer coisa para que as mulheres tomassem o controle
dos seus corpos num período tão intenso de descoberta que é a gravidez...
Lembro que nesse tempo cheguei até a barganhar com minha dupla atender todas as
mulheres grávidas da unidade pra ela fazer todas as visitas domiciliares
(obrigada, Lara, de coração e desculpa professoras, não tomem nossos
diplomas!). Eu não sabia, mas começava ali a minha relação com a saúde da
mulher. Muitas histórias de agressões domésticas ainda durante a gravidez, de
violências institucionais, maus tratos ao buscar atendimento em maternidades,
relatos de partos que pareciam mais uma cena do Clube da Luta...
Depois do feito de sair
ilesa do estágio rural consegui ser a pessoa mais azarada de uma turma de 60
alunos. No sorteio dos setores do hospital o meu nome foi aquele que ficou no
copo e fui direcionada pro setor que NINGUÉM queria ir. A maternidade. Eu já me
preparava pra um semestre triste e bem “tarefeiro”. Mas vivendo o serviço, vi
que ali havia mais que uma maré que arrastava a todas e todos... Ali havia um
foco de resistência. Havia mulheres pensando em outras mulheres, havia uma
assistência que tentava respeitar a mulher e romper com um ciclo vicioso de
opressões.
Foi assim que eu percebi que
movimento de humanização do parto era um movimento de resistência. Resistência
a um sistema que trata o corpo da mulher como doença desde a menstruação e que,
por motivos não-médicos, jogou a gravidez como um “problema” a ser resolvido
cirurgicamente. Ora, devia ter alguma coisa errada em um evento fisiológico,
que tem possibilidade estatística de 85% de acontecer de forma natural, sendo
sempre motivo (especificamente quase que 90% dos motivos da rede
suplementar/privada de saúde, na época) pra uma cirurgia que corta 7 camadas do
corpo da mulher.
Pensando na própria
fundamentação histórica dessa realidade posta, me é impensável não admitir que
a institucionalização da saúde e hierarquização dos serviços tem fundamentos
bem definidos na história da firmação do patriarcado, desde a época em que mulheres
consideradas “bruxas” e curandeiras detinham autoridade sobre os processos de
saúde, doença e cura das suas comunidades. Essas mulheres, que exaltavam o
corpo feminino rompendo com a tal da “moral” cristã, de que o corpo era
instrumento do pecado, foram escanteadas, perseguidas e queimadas como figuras
diabólicas.
Assim, o “poder” de cura
passou quase que interinamente para a mão da igreja (e consequentemente do
estado) na figura dos clérigos, enquanto organizadores do serviço e tendo
freiras o dever de contato direto com os pacientes, fazendo isso de maneira
samaritana. Com o uso do cuidado como um instrumento cristão, ele começa a ser
pensado como meio de se alcançar perdão pelos pecados eternos e, mais tarde,
nessas fileiras inicia a somar as prostitutas, mulheres da vida, em busca de
redenção. Mais tarde, com o aumento das demandas de cuidados gerado pelas
grandes guerras e o advento da enfermagem moderna e sua aproximação com as
ciências do cuidado, a profissão ganha outro caráter, ainda que muito marcada
por suas origens.
Durante toda nossa vida
fomos ensinadas a entregar nossa saúde na mão de profissionais que certamente
saberão o que é melhor para nós. Na nossa cultura é comum uma vivência das
nossas fases da vida de forma alienada, cheia de medicações e medidas de
contenção dos processos naturais. No contexto do parto, enquanto área de
atuação profissional em saúde, a enfermagem obstétrica vem revivendo
enfrentamentos clássicos tal qual as bruxas e curandeiras, a partir da consciência
de como este poder do sistema tecnocrático e biomédico que nos leva à uma
cultura cesarista e excessivamente medicalizada, exercendo um trabalho crítico
de retorno à auto-consciência e autonomia feminina sobre seus processos
reprodutivos, seu corpo e suas realidades de saúde e doença.
Lógico que ainda precisamos
melhorar muito no tocante a debates mais polêmicos como a própria legalização do
aborto. Nesse ponto sempre vale provocar, ainda que discretamente algumas
colegas e amigas de trabalho: Como defender uma autonomia seletiva sobre o
corpo e os processos reprodutivos? Como dizer a mulher “você pode” só quando
você e sua religião concordam? A humanização do parto vem quebrar não só os
seus, mas muitos e muitos abusos que caíram na normose.
Normose e Violência
Obstétrica
E o que seria essa normose? Normose
nada mais é que justificar a reprodução de normas, valores, estereótipos, padrões
de comportamento não saudáveis por ser algo frequente, comum... A patologia da
normose acaba ganhando aprovação por consenso na sociedade, mas pode provocar
sofrimento, doença e morte. É assim quando o feminismo enfrenta os padrões de
beleza, os papéis de gênero, a normatização e relativização da violência contra
a mulher... E é igual assim quando se entende o corpo da mulher como um corpo
patológico, onde a menstruação é condenada, a gravidez é doença e parto não
passa de um mero processo cirúrgico e impessoal.
À essa apropriação do corpo
da mulher, transformando seus processos reprodutivos em eventos médicos e
patológicos, baseada em uma lógica de desumanização, gerando perda de autonomia
e de capacidade decisória sobre sua sexualidade, nós chamamos de Violência
Obstétrica. A violência obstétrica é nossa principal arquiinimiga e, como todo
tipo de violência contra a mulher, pode vir velada no nosso cotidiano,
disfarçada de cuidado e zelo, sempre pronta para nos silenciar.
A violência obstétrica anda
acompanhada da violência institucional, mas é bom deixar claro que as duas são
diferentes. A primeira é uma reprodução dos profissionais de saúde e a segunda
aquela que o estado e suas instituições nos impõem. Ao pensar em parir no SUS,
é frequente a peregrinação das mulheres pobres até receber algum atendimento,
frieza, rispidez, negligência, desqualificação das suas queixas de dor e do
saber popular diante do famoso “tenho 30 anos de profissão e sei o que estou fazendo”, banalizando as
necessidades das pessoas e o direito básico ao acesso a um atendimento digno.
As mulheres, enquanto mero
“corpo vivo que contém outro corpo vivo”, são proibidas de gritar, ficam
restritas ao leito, submetidas a procedimentos desnecessários como o famoso
“sorinho”, expostas a manobras nas quais os profissionais sobem na barriga pra
“dar uma ajudinha” na saída do bebê, julgadas pela quantidade de filhos,
humilhadas com a frase tão marcante “pra fazer você não gritou”, sofrem cortes
desnecessários na região genital, tudo isso em desrespeito a um processo
fisiológico, para que o trabalho de parto (ou, nesse caso, o processo doentio)
cesse logo. Isso não é observado apenas por mim enquanto construo uma linha de
pensamento entre violência obstétrica e as demais formas de violência contra a
mulher, estudos científicos vem documentando práticas abusivas contra a
autonomia da mulher no parto há muito tempo.
E não são só ações
explícitas... É tão frequente que se torna inacreditável a subestimação do
saber não-científico das mulheres e seus acompanhantes nas maternidades e
consultórios de pré-natal. Atitudes sempre acompanhadas de “mãezinha” “meu bem”
seriam acolhedoras se não descaracterizassem as protagonistas do seu processo e
fossem as reais intenções a garantia de umas horas de sono e um plantão
tranquilo ou que o profissional não seja impedido de fazer sua viagem
internacional que programou há tanto tempo só porque aquela “paciente cheia de
direito inventou de entrar em trabalho de parto”.
Nessa corrida contra os
fatos (que a gravidez e o parto são seguros), vale tudo. Desde inventar uma
condição muito rara e abstrata de “bacia-tão-muito-estreita” através da qual a
mulher nunca vai conseguir parir, a justificar suas falsas indicações de
cesariana por cordão enrolado no pescoço que vai sufocar o bebê.. Acompanhadas
sempre do aviso/ameaça: “Eu tô pensando no melhor pra você, você não quer que
seu filho morra, não é mesmo?”.
Para eles, produtividade e
comodidade. Para nós, mais um contexto no qual nosso corpo é condenado e nossas
vontades anuladas. Não se trata de contrapor somente o parto normal X
cesariana. A cesariana salva, diariamente, milhares de vidas maternas e fetais.
Trata-se de evidências científicas que afirmam que partos normais são mais
seguros que cesarianas sem indicações maternas ou fetais para interrupção
cirúrgica. É sobre ainda a certeza de que, quando respeitada a via vaginal, as
mulheres não sofram intervenções desnecessárias ou não tenham seus corpos
mutilados. Essa discussão é pela nossa autonomia, pelas nossas decisões
completamente esclarecidas quantos aos riscos e benefícios para a nossa saúde.
Por nossas vidas e aceitação das mais diversas expressões e vivência dos
processos do nosso corpo.
Fonte: Google Imagens |
E é nesse contexto que
cheguei até aqui enquanto feminista e enfermeira obstetra e que eu e outras
permanecemos sendo as bruxas 2.0: queimadas diariamente pela igreja, pelo
estado e por corporações profissionais, seja enquanto parteiras ou enquanto
parideiras. É ainda por entender também que o acesso à informação e aos meios
financeiros e logísticos de se parir de forma segura e respeitada ainda não é
uma realidade para as mulheres pobres, negras e periféricas é que reforço que
ainda precisamos avançar mais e mais e quebrar esse debate à esquerda,
fundamentando-o politicamente. Não é porque uma fração de mulheres – em sua
maioria de classe média – está parindo em casa que temos avanços universais e
concretos. Precisamos de mais.
Precisamos enfrentar um
sistema que proíbe a educação sexual, mas condena a adolescente que engravida,
obrigando esta ou qualquer mulher a levar uma gravidez adiante; um sistema que
obriga toda mulher a casar e ser mãe, mas que não a deixa parir. Um sistema tão
controverso que não me espanta ser sustentado e mantido pela lógica patriarcal
e abusiva do capitalismo. Um sistema que está aí pra ser peitado.
E
é por essa luta que nós seguimos. Buxudas e parteiras to the front!
Foto: Maria Elisa Franco/UOL |
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