sexta-feira, 13 de maio de 2016

Parteria e Idelogia ou: Como o feminismo me levou ao rolê da humanização do parto


Foto: Arquivo pessoal - 5do12

Quando fui convidada pra escrever um guest post aqui pensei que seria sobre qualquer coisa que envolvesse feminismo, até que surgiu a proposta de falar de como cheguei ao mundo do Parto Humanizado. Depois de nem chorar muito, só tremer, vi que não ia ter como dissociar uma coisa da outra. Simplesmente porque na minha vida o movimento nunca foi o de encontrar como o feminismo se encaixava dentro do cenário do Parto Humanizado e sim, no que eu, enquanto feminista, ia querer trabalhar pelo resto da vida.

Meu nome é Bárbara, sou alagoana, nordestina e divido a vida entre ser professora universitária, mestranda, enfermeira obstetra (que prefere ser chamada de parteira) e militante anarquista. Eu sou uma pessoa que, particularmente, você verá sorrir quando falar de empoderamento, quando relatar algum caso de mulher lacrando e fazendo barulho pra ter um parto respeitoso, vendo fotos de nenês bem nascidos e indo direto pros braços de sua mãe e de apoio mútuo entre mulheres... Mas tem uma coisa engraçada quando você me perguntar se eu sempre quis ser enfermeira obstetra. Eu direi que não.

Nunca fui muito chegada às rotinas hospitalares principalmente pela hierarquização imposta simbolicamente dentro dos hospitais. Nessas instituições podemos ver uma profissão majoritariamente “masculina” reproduzindo poder sobre outras profissões majoritariamente “femininas”. Desde quando fui privilegiada pelo ingresso na universidade, aos 16 anos, o contato com o feminismo e o movimento estudantil me deixaram inclinada a exercer minha profissão como função social, o que – por algum motivo – me levou a pensar que a saída era sempre a Saúde Pública. Não tô dizendo que estava certa, mas pensei assim. 

Por um tempo foquei na Saúde Coletiva, na Educação Popular em Saúde, pensando em construir linhas de pesquisas e oportunidades populares de atuação só e somente só nesse campo. Mas esses mesmos motivos, que me fizeram criar apego pelo curso, foram os disparadores de grande frustração quando cheguei ao último ano de curso e me via quase obrigada a levantar da cama e atravessar a cidade pra chegar ao posto de saúde, sem vontade alguma de fazer aquilo. Não pensei em feminismo, em classismo, nada.

Não queria estar ali, tinha toda a consciência das relações de trabalho, exploração do trabalhador e desvios na saúde pública, mas não queria. Naquele cenário eu só gostava do dia de pré-natal, de fazer qualquer coisa para que as mulheres tomassem o controle dos seus corpos num período tão intenso de descoberta que é a gravidez... Lembro que nesse tempo cheguei até a barganhar com minha dupla atender todas as mulheres grávidas da unidade pra ela fazer todas as visitas domiciliares (obrigada, Lara, de coração e desculpa professoras, não tomem nossos diplomas!). Eu não sabia, mas começava ali a minha relação com a saúde da mulher. Muitas histórias de agressões domésticas ainda durante a gravidez, de violências institucionais, maus tratos ao buscar atendimento em maternidades, relatos de partos que pareciam mais uma cena do Clube da Luta...

Depois do feito de sair ilesa do estágio rural consegui ser a pessoa mais azarada de uma turma de 60 alunos. No sorteio dos setores do hospital o meu nome foi aquele que ficou no copo e fui direcionada pro setor que NINGUÉM queria ir. A maternidade. Eu já me preparava pra um semestre triste e bem “tarefeiro”. Mas vivendo o serviço, vi que ali havia mais que uma maré que arrastava a todas e todos... Ali havia um foco de resistência. Havia mulheres pensando em outras mulheres, havia uma assistência que tentava respeitar a mulher e romper com um ciclo vicioso de opressões.

Foi assim que eu percebi que movimento de humanização do parto era um movimento de resistência. Resistência a um sistema que trata o corpo da mulher como doença desde a menstruação e que, por motivos não-médicos, jogou a gravidez como um “problema” a ser resolvido cirurgicamente. Ora, devia ter alguma coisa errada em um evento fisiológico, que tem possibilidade estatística de 85% de acontecer de forma natural, sendo sempre motivo (especificamente quase que 90% dos motivos da rede suplementar/privada de saúde, na época) pra uma cirurgia que corta 7 camadas do corpo da mulher.

Pensando na própria fundamentação histórica dessa realidade posta, me é impensável não admitir que a institucionalização da saúde e hierarquização dos serviços tem fundamentos bem definidos na história da firmação do patriarcado, desde a época em que mulheres consideradas “bruxas” e curandeiras detinham autoridade sobre os processos de saúde, doença e cura das suas comunidades. Essas mulheres, que exaltavam o corpo feminino rompendo com a tal da “moral” cristã, de que o corpo era instrumento do pecado, foram escanteadas, perseguidas e queimadas como figuras diabólicas.

Assim, o “poder” de cura passou quase que interinamente para a mão da igreja (e consequentemente do estado) na figura dos clérigos, enquanto organizadores do serviço e tendo freiras o dever de contato direto com os pacientes, fazendo isso de maneira samaritana. Com o uso do cuidado como um instrumento cristão, ele começa a ser pensado como meio de se alcançar perdão pelos pecados eternos e, mais tarde, nessas fileiras inicia a somar as prostitutas, mulheres da vida, em busca de redenção. Mais tarde, com o aumento das demandas de cuidados gerado pelas grandes guerras e o advento da enfermagem moderna e sua aproximação com as ciências do cuidado, a profissão ganha outro caráter, ainda que muito marcada por suas origens.
Durante toda nossa vida fomos ensinadas a entregar nossa saúde na mão de profissionais que certamente saberão o que é melhor para nós. Na nossa cultura é comum uma vivência das nossas fases da vida de forma alienada, cheia de medicações e medidas de contenção dos processos naturais. No contexto do parto, enquanto área de atuação profissional em saúde, a enfermagem obstétrica vem revivendo enfrentamentos clássicos tal qual as bruxas e curandeiras, a partir da consciência de como este poder do sistema tecnocrático e biomédico que nos leva à uma cultura cesarista e excessivamente medicalizada, exercendo um trabalho crítico de retorno à auto-consciência e autonomia feminina sobre seus processos reprodutivos, seu corpo e suas realidades de saúde e doença.

Lógico que ainda precisamos melhorar muito no tocante a debates mais polêmicos como a própria legalização do aborto. Nesse ponto sempre vale provocar, ainda que discretamente algumas colegas e amigas de trabalho: Como defender uma autonomia seletiva sobre o corpo e os processos reprodutivos? Como dizer a mulher “você pode” só quando você e sua religião concordam? A humanização do parto vem quebrar não só os seus, mas muitos e muitos abusos que caíram na normose.

Normose e Violência Obstétrica

E o que seria essa normose? Normose nada mais é que justificar a reprodução de normas, valores, estereótipos, padrões de comportamento não saudáveis por ser algo frequente, comum... A patologia da normose acaba ganhando aprovação por consenso na sociedade, mas pode provocar sofrimento, doença e morte. É assim quando o feminismo enfrenta os padrões de beleza, os papéis de gênero, a normatização e relativização da violência contra a mulher... E é igual assim quando se entende o corpo da mulher como um corpo patológico, onde a menstruação é condenada, a gravidez é doença e parto não passa de um mero processo cirúrgico e impessoal.

À essa apropriação do corpo da mulher, transformando seus processos reprodutivos em eventos médicos e patológicos, baseada em uma lógica de desumanização, gerando perda de autonomia e de capacidade decisória sobre sua sexualidade, nós chamamos de Violência Obstétrica. A violência obstétrica é nossa principal arquiinimiga e, como todo tipo de violência contra a mulher, pode vir velada no nosso cotidiano, disfarçada de cuidado e zelo, sempre pronta para nos silenciar.

A violência obstétrica anda acompanhada da violência institucional, mas é bom deixar claro que as duas são diferentes. A primeira é uma reprodução dos profissionais de saúde e a segunda aquela que o estado e suas instituições nos impõem. Ao pensar em parir no SUS, é frequente a peregrinação das mulheres pobres até receber algum atendimento, frieza, rispidez, negligência, desqualificação das suas queixas de dor e do saber popular diante do famoso “tenho 30 anos de profissão e sei o que estou fazendo”, banalizando as necessidades das pessoas e o direito básico ao acesso a um atendimento digno.

As mulheres, enquanto mero “corpo vivo que contém outro corpo vivo”, são proibidas de gritar, ficam restritas ao leito, submetidas a procedimentos desnecessários como o famoso “sorinho”, expostas a manobras nas quais os profissionais sobem na barriga pra “dar uma ajudinha” na saída do bebê, julgadas pela quantidade de filhos, humilhadas com a frase tão marcante “pra fazer você não gritou”, sofrem cortes desnecessários na região genital, tudo isso em desrespeito a um processo fisiológico, para que o trabalho de parto (ou, nesse caso, o processo doentio) cesse logo. Isso não é observado apenas por mim enquanto construo uma linha de pensamento entre violência obstétrica e as demais formas de violência contra a mulher, estudos científicos vem documentando práticas abusivas contra a autonomia da mulher no parto há muito tempo.

E não são só ações explícitas... É tão frequente que se torna inacreditável a subestimação do saber não-científico das mulheres e seus acompanhantes nas maternidades e consultórios de pré-natal. Atitudes sempre acompanhadas de “mãezinha” “meu bem” seriam acolhedoras se não descaracterizassem as protagonistas do seu processo e fossem as reais intenções a garantia de umas horas de sono e um plantão tranquilo ou que o profissional não seja impedido de fazer sua viagem internacional que programou há tanto tempo só porque aquela “paciente cheia de direito inventou de entrar em trabalho de parto”.

Nessa corrida contra os fatos (que a gravidez e o parto são seguros), vale tudo. Desde inventar uma condição muito rara e abstrata de “bacia-tão-muito-estreita” através da qual a mulher nunca vai conseguir parir, a justificar suas falsas indicações de cesariana por cordão enrolado no pescoço que vai sufocar o bebê.. Acompanhadas sempre do aviso/ameaça: “Eu tô pensando no melhor pra você, você não quer que seu filho morra, não é mesmo?”.

Para eles, produtividade e comodidade. Para nós, mais um contexto no qual nosso corpo é condenado e nossas vontades anuladas. Não se trata de contrapor somente o parto normal X cesariana. A cesariana salva, diariamente, milhares de vidas maternas e fetais. Trata-se de evidências científicas que afirmam que partos normais são mais seguros que cesarianas sem indicações maternas ou fetais para interrupção cirúrgica. É sobre ainda a certeza de que, quando respeitada a via vaginal, as mulheres não sofram intervenções desnecessárias ou não tenham seus corpos mutilados. Essa discussão é pela nossa autonomia, pelas nossas decisões completamente esclarecidas quantos aos riscos e benefícios para a nossa saúde. Por nossas vidas e aceitação das mais diversas expressões e vivência dos processos do nosso corpo.

Fonte: Google Imagens
E é nesse contexto que cheguei até aqui enquanto feminista e enfermeira obstetra e que eu e outras permanecemos sendo as bruxas 2.0: queimadas diariamente pela igreja, pelo estado e por corporações profissionais, seja enquanto parteiras ou enquanto parideiras. É ainda por entender também que o acesso à informação e aos meios financeiros e logísticos de se parir de forma segura e respeitada ainda não é uma realidade para as mulheres pobres, negras e periféricas é que reforço que ainda precisamos avançar mais e mais e quebrar esse debate à esquerda, fundamentando-o politicamente. Não é porque uma fração de mulheres – em sua maioria de classe média – está parindo em casa que temos avanços universais e concretos. Precisamos de mais.

Precisamos enfrentar um sistema que proíbe a educação sexual, mas condena a adolescente que engravida, obrigando esta ou qualquer mulher a levar uma gravidez adiante; um sistema que obriga toda mulher a casar e ser mãe, mas que não a deixa parir. Um sistema tão controverso que não me espanta ser sustentado e mantido pela lógica patriarcal e abusiva do capitalismo. Um sistema que está aí pra ser peitado.

E é por essa luta que nós seguimos. Buxudas e parteiras to the front!

Foto: Maria Elisa Franco/UOL

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