segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

entrevisa: Lovelove6

Sobre quadrinhos, leões, mulheres e zines



O primeiro contato que tive com o trabalho da Gabi foi lendo a versão web de A Ética do Tesão na Pós-Modernidade, zine de ilustrações que fala sobre relações interpessoais. Nesse contexto, "relações interpessoais" nada mais é do que um termo frio e distante que na verdade camufla o assunto do zine, que na minha leitura é sobre as dores que as outras nos causam, as dores que nós causamos as outras e as dores que causamos a nós mesmas, estejam esses "outras" envolvidas  pelo sexo ou não, pela amizade (ou tentativa) ou não.

Mandei um email pra Katzen, sugerindo uma troce de zines. Devo ter mandado o Histérica e o Riot Grrl, e pouco tempo depois recebi um pequeno envelope, bem pesadinho e com cores fluorescentes. Dele, saiu a edição impressa do Ética do Tesão e a primeira edição do Artemis, zine que ela faz colaborativamente apenas com mulheres, e fala sempre sobre a relação das mulheres com outras espécies.

Quando comecei a ler as primeiras tirinhas da Lovelove6 no Batata Frita Murcha vi que o bagulho era doido mesmo, e que não era apenas desejável mas também necessário que eu a entrevistasse para este blog. Acontece que, os desenhos dela em conjunto com as frases, o traço e o discurso que ela imprime ao conjunto traduzem muito bem um universo específico o qual eu me relaciono e identifico. Aquele em que merdas e alegrias se desvelam de forma lúcida e dolorida.

Versos do poema "Entretanto" de Nefitali de Oliveira

E essa identificação causada por algumas músicas, desenhos, livros, é um troço tão poderoso que por vezes se torna medicina, se torna o fiozinho que te faz escapar da rotina esmagadora. Senti muito isso lendo Você é Minha Mãe? da Alison Bechdel, e sempre que encontro esse tipo de identificação seguro mais um pouco para aproveitar o "gostinho" e de alguma forma, pra mim, os trampos da Gabi carregam isso.

É claro que isso é só uma interpretação minha, totalmente parcial. Ah, é de autoria dela a Garota Siririca, tirinha postada na Revista Samba. Para uma leitura mais informativa e para conhecer mais o traço da Gabi, Katzen, Lovelove6 - são todas a mesma garota - confere a entrevista sem edição, sem corte. Perguntas por Carla Duarte e respostas e todos os desenhos do post por Katzen Minze.


1) Quando e porque você começou a desenhar e a fazer histórias em quadrinhos? O que te impulsionou e influenciou a começar? 

Desenho desde os 09 anos por causa de Pokémon, que estava na capa da primeira Anime Do que comprei. Consumi e desenhei mangá por muito tempo mas não tinha paciência ou manha pra desenhar quadrinhos. Só comecei os quadrinhos mesmo no começo de 2013. O que engatilhou a produção foram os incentivos dos amigos próximos que também estavam começando a produzir e a se autopublicarem por meio de zines.
Autoretrato de lovelove6


Quando entrei em contato com as zines dos amigos percebi que não precisava me estressar pra fazer grandes obras geniais e desencanei das expectativas e perfeccionismos. Entendendo a zine como um espaço informal e experimental, fiquei mais à vontade para produzir e mostrar os quadrinhos. 


2) Um dos seus projetos atuais é a página de tirinhas 'Batata Frita Murcha' atualizada diariamente no facebook. A temática é diferente entre si, e o estilo de cada desenhista vai se complementando. Como começou o projeto? Existem planos de reunir esse material em livro ou zine?

O Batata Frita Murcha é um projeto de webcomics iniciado pelo Daniel Lopes e Heron Prado. Quando eu soube da página ainda tinham poucas tirinhas do Heron, daí meio que intimei eles a me convidarem, hehe.

Em geral o tema é "deprê", qualquer coisa que invoque uma reflexãozinha sobre badvibes, por aí. Amo esse projeto, essa característica dos estilos serem bem distintos uns dos outros e observar o desenvolvimento dos colegas ao longo do tempo. Lançamos um pequeno zine chamado Ai, Amor, no dia dos namorados desse ano, mas esgotou. Pensamos em publicar mais coisas, mas não temos planos definidos agora.

3) As suas tirinhas no Batata Frita Murcha tem características marcantes, como a predominância do preto, branco e pink que traduzem histórias que falam com honestidade sobre sentir raia, querer ir embora, e várias sortes de problemas pessoais. Essas tirinhas são inspiradas em que? elas formam uma série? Porque mesmo não tendo uma personagem específica como protagonistas as histórias se relacionam. 

No BFM cada pessoa só pode usar uma cor, no meu caso é o rosa. Recentemente terminei algumas tirinhas que ao longo da produção começaram a ser pensadas como uma série e gostei muito da experiência e do desafio de criar tirinhas que funcionem sozinhas, mas que unidas formam uma narrativa. Penso em fazer outras seriezinhas, mas também tirinhas "one-shot", que são a principio a proposta do BFM.

Minhas temáticas giram muito em volta de sentimentos e relacionamentos interpessoais. No Batata Frita Murcha tenho vontade de explorar mais questões políticas também, como já faz o Augusto Botelho (das tirinhas vermelhas). Em algum nível as tirinhas se baseiam em experiências próprias, mas misturo com referências diversas das coisas do mundo pra atribuir outros valores e construir outras perspectivas, para não me expor em excesso também.

4) Quais são as suas principais referências ao desenhar? Você tem algum "ritual" ou algo que faz sempre na hora de criar algo novo? (por exemplo: só desenhar ouvindo música, etc)

Admiro muitos artistas, tenho muitas referências e trago pro meu trabalho muitos reflexos de obras cujos autores eu nem sei (esses fenômenos do tumblr em que você nunca descobre a fonte das coisas, entre nomes estrangeiros que eu não me lembro mais).

As produções ao meu redor, de amigos e amigas, influenciam bastante também nas minhas produções. Os trampos que venho acompanhando ultimamente são as produções dos amigos e amigas da revista SAMBA (DF), revista Prego (RJ), meus amigos do Batata Frita Murcha, várias mulheres participantes da Zine XXX, coletivo Invisível e Loki, editora Piqui C'açúcar. Também aprendo bastante sobre produzir e gerir zines e projetos com o Daniel Lopes e o Augusto Botelho que fazem a zine MÊS (DF).


Quem nunca?

Para desenhar lavo as mãos várias vezes durante o processo, preciso ter uma régua, uma borracha e uma lapiseira. Gosto de incenso. Uso muito o computador para procurar referências para o desenho e, dependendo do projeto, o computador tem outras funções facilitadoras, tipo reposicionar os requadros no photoshop, imprimir e refazer os quadrinhos melhores, modificiar e desenhar no próprio computador, servir de mesa de luz... Em geral uso o Photoshop para tratar os trampos e diagramar as zines. Mas fico atenta para não me tornar muito dependente do computador e da internet, já que sempre pode rolar um imprevisto e não ter acesso a essas facilidades.

5)"Ética do Tesão.." é o seu primeiro zine, que fala sobre relacionamentos e acho que tem um tom parecido com as suas tirinhas no batata frita murcha. Com uma lucidez desgarrada e uma mitologia própria. Existem planos para lançar mais uma edição?

O Ética foi meu primeiro trabalho mais elaborado em quadrinhos e a primeira zine que publiquei. Teve uma receptividade muito grande e linda, abriu várias portas pra mim.
O segundo volume já foi publicado e lançado no FIQ 2013, talvez eu faça mais volumes no futuro.

6) Você edita colaborativamente o zineArtemis, que é temático e conta com artistas de várias cidades. como nasceu o projeto? Como você vê o papel do zine na epa dos tablets e toda essa tecnologia que oferece uma alternativa a materialidade dos papéis?

A projeto zine Artemis começou com a necessidade que eu tinha de estar publicando um trampo com alguma frequência, me mantendo visível no role das zines. Se eu fosse depender das minhas produções individuais, seria mais rara a minha participação em eventos e banquinhas de vendas, pois são mais lentas. Com a Artemis eu produzo uma zine bimestral ou trimestralmente, coletando vários trampos de colaboradoras interessadas na proposta, aumento o nível das habilidades de organização/edição/montagem, e ainda posso abordar, dentro do espaço das autopublicações e quadrinhos, questões de gênero e fazer alguma troca de experiências com mulheres interessadas na área. A Artemis ainda tem a proposta de fazer reflexões sobre relações femininas e humanas com outras espécies, que não é tão explorada em forma de diálogo entre as colaboradoras, permanecendo mais como uma reflexão interna de cada uma, mas que já funciona em algum nível também e é o que traz a força dos trabalhos da Artemis.

Penso que os tablets gráficos e os outros aparatos tecnológicos existam pra somar à experiência da zine e produção artística em geral. A tablet é ótima para produzir com mais agilidade e evitar alguns ossos de lidar com o papel e as tintas. O meio digital tem qualidades bem específicas, tanto visuais quanto metodológicas, e acho que o interessante é ponderar se essas qualidades vão de encontro à proposta do seu projeto, se elas somam ou se empobrecem o que você quer fazer. Já fui bolada com essa aparente popularização dos meios digitais frente aos tradicionais, mas com a experiência e envolvimento nas áreas artísticas e de publicação percebo que tudo tem espaço quando é bem desenvolvido e procura aparecer.

7) O fato de você ser mulher interfere de alguma forma no seu trabalho? Existem algumas artistas que marcam o gênero em seus trabalhos, e outras que não gostam de serem associadas a isso. Como é pra você?

Ser mulher define várias gamas de estratégias e abordagens que você pode ter ou sob as quais vai ser submetida para ganhar espaço dentro de campos profissionais predominantemente masculinos. O campo dos quadrinhos é machista e masculino, e uma postura feminista mais extrema e ativa inevitavelmente leva alguém a ser boicotada e invisibilizada. Acho que às vezes não vale à pena entrar numa discussão sobre machismo com um colega autor ou editor, em geral tentam relativizar o machismo e os preconceitos à exaustão. Melhor focar em produzir material que vá contra as mentalidades que você quer combater e procurar estabelecer uma rede de contatos legal que faça seu trampo se espalhar e, de repente, infiltrar os grupos de pessoas menos solidárias.



Um leão por dia

Prefiro focar nessas abordagens mais indiretas, inclusivas, que possivelmente gerem mais sentimentos de empatia, identificação e solidariedade do que sentimentos de contradição ou hostilidade. Procuro falar de questões de mulheres por uma abordagem empoderadora, me esforço pra não reproduzir estereótipos raciais, de gênero e preconceitos diversos nos meus quadrinhos. Apesar disso, se for o caso, não nego entrar em conflitos mais acalorados e que coloquem em risco minha visibilidade no role, pra defender as ideias e críticas feministas/queer.

Ao mesmo tempo procuro minas que estão fazendo e lendo zines, preocupadas com essas mesmas questões. É muito bom porque funciona como uma rede de apoio, um nicho paralelo ao "mainstream" independente dos quadrinhos, que acontece mais virtualmente, mas onde rola uma troca maior e mais rica de experiências pessoais e técnicas entre as autoras, de diferentes países inclusive. Tenho visto essa rede crescer tanto no tumblr, quanto no facebook e blogs. Entre autoras, editoras e produtoras, em pouco tempo, conheci você, a Amanda Dias (zine Cocô, BH), Beatriz Lopes e Sirlanney (XXX, RJ), mulheres do Vulva La Vida (BA) e Ladyfest (SP), a equipe do site Lady's Comics. 
Estudo feminismo e teoria queer, procuro refletir minha mentalidade acerca dessas questões no que produzo e gosto de pensar na produção de hqs e zines como um tipo de ativismo solitário.

8) Você publica na Revista Samba a Garota Siririca, que fala de diversas formas sobre masturbação. Como surgiu a ideia de criar essa personagem e as histórias que ela vive?

Publico a GS todas as sextas-feiras no blog da Revista Samba. Eu queria falar mais diretamente de questões feministas e sexuais. A sexualidade feminina é construída de uma forma bizarra, e especialmente em relação à masturbação, minha vivência teve episódios traumáticos e mudanças drásticas. Daí percebo a necessidade que existe de um mínimo diálogo ou encorajamento nesse sentido, pras minas pensarem mais e quererem experimentar mais, como a coisa natural, saudável e libertadora que conhecer e curtir seu corpo deveria ser.

Canso de ver a figura do pênis e mulheres sendo fetichizadas e maltratadas em quadrinhos, em geral. Percebo como os quadrinhos são um forte instrumento de educação sexual, pois cresci lendo mangás e minhas referências sexuais eram basicamente os das personagens femininas, geralmente fraquíssimas, ingênuas e imaculadas. Passei poucas e boas por esse modelo e foi muito difícil desconstruir essas práticas e mentalidade. Quis fazer a GS para haver um contraponto à todas essas abordagens violentas e palhas que são publicadas à exaustão e sem reflexão ou solidariedade alguma por parte das editoras e autores.




9) Quais são os autores de HQ que você mais gosta (*não necessariamente só HQ, se quiser citar algum desenhista ou outro artista, fica a vonts)

Amo as hqs do Shintaro Kago, Junji Ito, Suehiro Maruo e de Sailor Moon da Naoko Takeushi. Gosto muito da série Fables (Willingham), Lost Girls (Melanie Gebbie e Alan Moore), Sandman (Neil Gaiman), Black Hole (C. Burns), Wet Moon (Ross Campbell). Tem muitos outros famosões que eu gosto, mas o que mais tenho curtido mesmo são as produções de amigos e amigas. Os nacionais que mais gosto são Laerte, Beatriz Lopes, Sirlanney, Laura Lannes, Bárbara Malagoli, Lucas Gehre, Dw Ribatisky, Diego Guerlach, Diego Sanchez, Felipe Portugal, Rodrigo Okuyama, Alexandra Moraes...

10) Um novo projeto seu é o Gatinhos, zine meio erótico que está em fase de produção, correto? Conta mais a respeito pra gente.

Essa zine está sendo produzida atualmente e é sobre relacionamentos com homens e com gatos. Uma das histórias é erótica/pornô e foi publicada na minha página no FB (lovelove6). Não sei direito no que vai dar como um todo, mas vai ter a história mais longa que já desenhei, e tem me dado bastante trabalho. Não faço ideia de quando vai ser publicada.


Para quem não entendeu: é sobre misoginia e estupradores

11) Tem outras quadrinistas autorais que você goste do trabalho? Indique algumas para nós (preferencialmente mulheres).

Perto de mim tem a Juliana Del Lama que tem três lindas zines chamadas Histórias de Bicicleta (DF) e a Lívia Viganó e Taís Koshino que publicam vários quadrinhos e experiências pela editora Piqui C'açúcar (DF). Tem a Clara e a Bianca que mantém o blog ROSA XOTA (DF) com tirinhas toscas e outras produções bizarras, gosto também dos quadrinhos da Sapatoons Queerdrinhos, da Aline Lemos ("Desalineada"), Marília Bruno (Cara Eu Sou Legal), Sirlanney (Magra de Ruim), Julia Balthazar (Lusco-Fusco), Beatriz Romão (Worst Year Ever Comics), Cynthia Bonacossa (Golden Shower), Ana Mancini (Manzana), Ana Koehler (Beco do Rosário)...


12) O que você diria para quem quer começar a desenhar mas não sabe exatamente como começar/se começar?

Eu diria que qualquer nível de habilidade já é habilidade o bastante para criar um trabalho poderoso de desenho. Também que quanto mais você fizer, melhor vai ficar. Pessoalmente um dos métodos que mais desenvolveu meu conhecimento anatomico e traço foi desenho de modelo vivo/nu. Pra ter acesso a experiências mais ricas de desenho, as pessoas precisam ir atrás de quem desenha e estuda desenho na sua cidade, ir atrás da universidade, da biblioteca, ou mesmo de cursos pagos.

Também acho que é muito melhor pro nosso desenvolvimento ficar desenhando ou lendo algum texto sobre qualquer tema relacionado à filosofia ou história da arte do que gastar horas no tumblr absorvendo referências globais à exaustão, por exemplo. Se aprofundar nas ideias mais do que reproduzir apenas. Muitas vezes a força do desenho tem muito mais a ver com a articulação de ideias que se faz em torno dele do que com a técnica em si.

13) Valeu pela entrevista! O espaço fica aberto pra você falar o que quiser, complementar alguma informação etc.

Muito obrigada pela oportunidade da entrevista! (emoticon de coraçãozinho)


Tirinha critica quadrinistas sexistas, feita após um cara que foi à FIQ publicar fotos de algumas meninas sem o consentimento delas e as expondo - Leia a Nota de Esclarecimento do Festival Internacional de Quadrinhos

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