sexta-feira, 7 de junho de 2013

Útero & Castigo

Entenda mais sobre Estatuto do Nascituro, projeto de lei que oferece personalidade jurídica a embriões e obriga constitucionalmente que meninas e adultas vítimas de estupro dêem continuação a gravidez


Considerações iniciais
Esse texto foi escrito para uma revista de um trabalho de faculdade. A matéria foi finalizada dias antes do Estatuto ser votado pelo CFT (05/06) e tem como base o projeto de lei original. Nele, o aborto legal era criminalizado e proibido, ou seja, no projeto original mulheres estupradas seriam sempre obrigadas, via dispositivo de lei, a ter o filho. Com a votação, foi apresentado um substitutivo  que assegura que o aborto legal, tal qual a lei existe hoje, continuará existindo, mas, ainda sim o Estatuto (com o substitutivo) institui a bolsa-estupro. Faço essas considerações porque elas influenciam diretamente na abordagem da minha matéria, que partiu do pressuposto de que o aborto em todas as formas seria criminalizado. O projeto de lei ainda será analisado pela pela CCJ e o plenário da Câmara e, se aprovado, vai ao Senado.
Essa matéria só pode ser reproduzida em outros blogs/sites se eu for creditada, com essa consideração inicial e link para o post do blog. 

Por Carla Duarte 

O Estatuto do Nascituro (PL 478/2007) vem movimentando a Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara dos Deputados, com as diversas tentativas de votação do projeto, que ainda não obtiveram sucesso. O deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) se esforça para que o projeto seja votado. A expectativa é que o Estatuto retorne à pauta do CFT durante o mês de maio. 

O objetivo do projeto de lei é conceder ao embrião direitos fundamentais para que esse tenha direito a vida, e atribuir a ele o mesmo status jurídico e moral que pessoas nascidas e vivas possuem. Para assegurar esse direito, o Estatuto do Nascituro criminaliza o aborto em qualquer situação, até mesmo na que atualmente é permitida por lei, além de proibir pesquisas com células-tronco, técnicas de reprodução assistida e congelamento de embriões. 

O Código Penal, em seu artigo 128 decretado em 1940, assegura que é direito das mulheres interromperem a gravidez em duas situações: quando a gravidez é resultado de estupro e em caso de risco à saúde da grávida. No primeiro caso é necessária autorização judicial, e no segundo, o médico não precisa da autorização para realizar o procedimento. 

Em 2008 o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a pesquisa com células troncas, quando decidiram que o direito à terapia com elas é constitucional e também um direito à saúde.O STF, em 2012, definiu que mulheres grávidas de fetos anencéfalos também poderiam interromper a gravidez sem autorização judicial e que o ato não configuraria crime. O serviço é gratuito no Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com a literatura médica, a anencefalia é uma má-formação fetal congênita e irreversível, conhecida como “ausência de cérebro”, que leva à morte da criança poucas horas após o parto. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), em 65% dos casos a morte do feto é registrada no útero. 

Em 2007 o Estatuto do Nascituro foi apresentado pelos deputados federais Luiz Bassuma (PT/BA) e Miguel Martini (PHS/MG). Em 2011, a deputada Sueli Vidigal (PDT/ES) o desarquivou, e o texto recebeu parecer favorável do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) em função de sua adequação orçamentária e financeira e voltou a ser discutido na Câmara. 

Se aprovado, o estatuto tornará crime o aborto em caso de estupro. A pena para quem for considerada culpada é detenção de até três anos. Na prática, mulheres grávidas que corram risco de vida, gravidez de feto anencéfalo, vítimas de pedofilia e de estupro serão obrigadas constitucionalmente a manter a gravidez. 

De acordo com o texto, é direito do nascituro a prioridade em casos de adoção, quando o mesmo não for criado pela vítima de violência sexual. O projeto ainda prevê o pagamento de pensão alimentícia, com valor equivalente a um salário mínimo até que se complete 18 anos, para que essas crianças sejam sustentadas. Se o estuprador for identificado ele será o responsável pela pensão alimentícia, se não, a obrigação será do Estado. O pagamento da pensão prevista no Estatuto do Nascituro fez com que o projeto ficasse conhecido como “Bolsa Estupro”. Se for aprovado, a proibição da prática do aborto legal acontecerá em um momento em que os casos de estupro aumentam. 

Casos de estupro no Rio de Janeiro crescem 23,8% comparado a 2011 

Em maio foi lançado o Dossiê Mulher 2013, documento que está na 8ª edição e é elaborado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do estado do Rio de Janeiro. O objetivo da publicação anual é diagnosticar os principais crimes relacionados à violência contra a mulher. A 8ª edição traz informações referentes a 2012 com base nas ocorrências registradas nas delegacias do estado. 

Segundo o Dossiê Mulher, em 2012 os casos de estupro tiveram um aumento de 23,8%, comparado a 2011. Em números absolutos, foram registrados 4.871 casos em 2011, e no ano passado, 6.029. Destes casos 82,8% das vítimas eram mulheres ou meninas, sendo que 51,4% tinham até 14 anos e 78,1% tinham até 29 anos. Ou seja, mais da metade dos estupros praticados contra vítimas do sexo feminino, de acordo com a Lei nº 12.015/09, podem ser classificados como “estupro de vulnerável”. O Dossiê Mulher ainda traz as informações de que 51,1% das mulheres e meninas conheciam seus agressores e em 29,7% dos casos, o agressor era parente da vítima. No que se refere à cor, 55,7% das vítimas eram negras (pardas ou pretas) e 36,4% eram brancas. 

No Sul Fluminense também foi constatado aumento no número de estupros. As informações são dos seguintes Batalhões da Polícia Militar: 28º BPM (que cobre Volta Redonda, Barra Mansa e Pinheiral), do 37º BPM (que atua nas cidades de Resende, Itatiaia, Porto Real e Quatis) e do 10º BPM (que cobre Barra do Piraí, Valença, Rio das Flores, Piraí, Vassouras, Miguel Pereira, Paty do Alferes, Mendes e Engenheiro Paulo de Frontin). De acordo com os registros desses batalhões, que tem como base o primeiro semestre de 2011 comparado com o primeiro semestre de 2012, o aumento em números absolutos foi de 35 casos. 

O 28º BPM registrou 55 casos no primeiro semestre de 2011, e no primeiro semestre do ano seguinte 67 casos, totalizando um aumento de 12 registros de estupro. Já o 37º BPM, no primeiro semestre de 2011 registrou 25 casos, e no primeiro semestre de 2012, 39 casos. O aumento foi de 14 registros de estupro. Já o 10º BPM, no primeiro semestre de 2011 registrou 40 casos, e no mesmo período no ano seguinte, 49 casos.

Volta Redonda: lá também se discute violência contra a mulher. Varal Feminista feito pela organização da Marcha das Vadias de VR - Foto: Carla Duarte

O Conselho Federal de Medicina e o aborto 

Em março de 2013 o Conselho Federal de Medicina (CFM), entidade que representa 400 mil médicos, divulgou um parecer no qual sugere a ampliação da lista de situações em que o aborto é permitido. O CFM defende que procedimento também possa ser feito sem penalização até a 12ª semana de gestação por vontade da mulher, se o feto tiver anomalias genéticas que inviabilizem a vida fora do útero e se a gravidez tiver sido produto do emprego não consentido de técnicas de reprodução assistida (se ela não concordou com o uso de óvulos ou espermatozóides doados, por exemplo). 

O objetivo é que o documento seja enviado para a comissão especial do Senado que analisa as reformas do Código Penal. Os 27 presidentes dos conselhos regionais de medicina e a maioria dos conselhos federais aprovaram a posição da entidade. O parecer do CFM foi baseado na realidade brasileira, em que mulheres ricas optam por clínicas clandestinas que não oferecem tanto risco a saúde, enquanto mulheres pobres passam pelo procedimento em condições precárias e correndo risco de vida. O aborto realizado de forma precária é uma importante causa de mortalidade materna e o terceiro motivo de internações femininas no SUS. 

A origem da vida 

A discussão sobre o Estatuto do Nascituro por vezes pode ser polarizada nos debates de quando se começa a vida ou nos direitos reprodutivos das mulheres. Descobrir quando a vida começa é uma tarefa antiga, e foi apreendida por filósofos, religiosos e cientistas que criaram diversas explicações para o início - o que mostra que o assunto é relativo. 

Segundo a ginecologista Rosana Soares de Almeida e Silva, existem várias correntes diferentes que explicam o início da vida, e cada uma é interpretada de uma maneira. No âmbito religioso por exemplo, tudo começa na fecundação e dali em diante já existe uma vida e ela é superior a tudo. “Alguns acreditam que ela começa com a fecundação, outros com a nidação. Existem aqueles que acreditam que é quando começa a bater o coração, outros quando há o registro de atividade neurológica”, afirma. 

De acordo com a publicação “Anticoncepção de emergência: perguntas e respostas para profissionais de saúde”, publicada em 2011 pelo Ministério da Saúde, a fecundação não acontece imediatamente após relação sexual, não é sinônimo de gravidez e nem de concepção. 

A fecundação refere-se, exclusivamente, ao processo de união do espermatozóide e do óvulo, que tem um tempo limitado e definido para ocorrer. Se a relação sexual acontecer no dia da ovulação, a fusão dos núcleos demora entre 12 e 24 horas. Se ocorrer antes, os espermatozóides ficam no colo de útero por até cinco dias aguardando a ovulação, migrando gradativamente em direção às trompas. Quando o zigoto (óvulo fecundado) é formado, são necessários de cinco a sete dias para chegar até a cavidade uterina. 

“A nidação acontece quando o óvulo fecundado se cola ao endométrio, começando a formar a placenta e a se fixar dentro do útero”, explica Rosana. Segundo a publicação do Ministério da Saúde, a nidação completa-se entre o 11º e o 12º dia após a fecundação, resultando na concepção. Por isso, o conceito de concepção se aplica ao processo de nidação. É somente a partir da concepção que o pólo embrionário do blastocisto se desenvolve e resulta no embrião. Menos de 50% das relações sexuais em período fértil terminam em fecundação, e metade dos zigotos são perdidos naturalmente, sem que ocorra a implantação (concepção). 

Outra maneira de compreender o início da vida é a partir da concepção religiosa. Segundo o padre Milan, que atualmente está na Paróquia de São Sebastião, no Centro de Barra Mansa, a vida não começa no nascimento. “Para a Igreja a vida começa na fecundação, mesmo que esse momento seja um processo de alguns dias”, explica. Por isso, as religiões cristãs se opõem a prática do aborto. O padre ressalta que apesar das leis serem importantes, nem todas são moralmente aceitáveis. “Muitas constituições não convocam Deus em seus princípios, e é perigoso colocar tanto o homem quanto Deus no centro de tudo. O homem tem que lembrar que precisa de Deus para ser guiado”, afirmou. Desde o século IV o catolicismo condena o aborto em qualquer estado e qualquer circunstância, e essa é a posição oficial da Igreja Católica. 

Estatuto do Nascituro: sim ou não? 

A questão divide opiniões por estabelecer-se em um território em que passam direitos, ética e formas de se encarar a vida. A técnica de segurança do trabalho, coordenadora da pastoral da juventude paroquial e catequista da Paróquia Sagrado Coração de Jesus da Comunidade São José, Mariana Diogo César, é a favor do estatuto. “Sou a favor, pois é uma forma de se garantir vidas. O ser vivo não deve ter negado seu direito de gozar a vida, muito menos ser interrompido por outro ser”, opina. Mariana observa que algumas particularidades do projeto, como a proibição de estudos com células-tronco, é algo complexo e delicado. “Acredito que seja sim um bom projeto, mas que ainda precisa sofrer consideráveis adaptações”, afirma. A professora de ensino infantil Taynara Figueiredo Reis também concorda com a proteção da vida proposta pelo Estatuto. “Concordo com o Estatuto sim, toda nova vida deve ser protegida”, acredita. 

A ginecologista Rosana Soares de Almeida e Silva é católica, e tem sua visão religiosa e profissional. Ela é contra o aborto, pois acredita que toda criança é uma benção. Ao mesmo tempo, acredita que não se pode expor a paciente ao risco de vida, e que em relação aos casos de estupro a mulher tem que ter o direito de decidir. “Você já imaginou ter a criança, olhar para ela e se lembrar de tudo o que aconteceu? E aquela criança, quando souber da história dela, como ela vai reagir? São questões muito difíceis de serem respondidas, e acho que cada um deve ter o direito de resolver. Não sou favorável ao aborto, mas sou favorável que a pessoa tenha o direito de decidir sobre sua própria vida”, acredita. Rosana considera o estatuto um retrocesso. “Retirar da mãe o direito dela abortar um feto mal formado, que não é compatível com a vida, a fazer chegar até o final daquela gestação e passar por um trabalho de parto no qual ela sabe que o feto não irá sobreviver. É causar um sofrimento muito grande”, ressalta. 

A Organização Não Governamental Católicas pelo Direito de Decidir (CDD/BR) trabalha para promover a cidadania e os direitos humanos (sexuais e reprodutivos) das mulheres tanto dentro da igreja católica e em outras religiões quanto na sociedade. Segundo a psicóloga e membro da ONG, Rosangela Talib, a CDD é contra o Estatuto do Nascituro. “Esse projeto de lei pressupõe que a vida humana se inicia no momento da concepção e que deve ser protegida desde então. Isso inviabilizaria a possibilidade da realização de quaisquer abortamentos, mesmo os permitidos pela legislação atual”, explica. Outro objetivo do grupo é divulgar o pensamento religioso progressista em favor da autonomia das mulheres, reconhecendo sua autoridade moral e sua capacidade ética de tomar decisões sobre todos os campos de suas vidas. De acordo com Rosângela, o CDD compactua com a posição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera que o processo de desenvolvimento de um ser humano acontece a partir da nidação. 

A corretora de seguros Melissa Fleming é contra o Estatuto do Nascituro, e acredita que cabe a mulher escolher ter ou não um filho que é resultado de um estupro. Melissa também chama a atenção para a relação entre religião e Estado. “Há outra coisa neste projeto que me incomoda profundamente. Ele é desenvolvido por um deputado cristão, que direta ou indiretamente, quer impor suas crenças como lei para a população. Segundo a constituição vigente, o Estado é laico, portanto política e religião devem ser separadas, o que claramente não acontece hoje”, argumenta. A estudante Ana Carolina Lacerda defende o aborto legal apenas em casos de estupro e gravidez de feto anencéfalo, mas também não concorda com o Estatuto do Nascituro. “Sou totalmente contra esse projeto de lei por achar que é um desrespeito a liberdade da mulher”, afirma. 

Marcha das Vadias de Volta Redonda 

No dia 11 de maio o debate “Cantinho Feminista” marcou presença na Feira Grátis da Gratidão, que aconteceu na Praça Brasil, em Volta Redonda. O objetivo da conversa foi discutir a realização da primeira Marcha das Vadias na cidade, e também do Sul Fluminense. Inspiradas por outras marchas do Brasil e de outros países, uma das principais bandeiras da manifestação é discutir a culpabilização das vítimas por estupro, ao invés dos estupradores.

Machismo e sexismo são discutidos no 'Cantinho Feminista' - foto: Carla Duarte
O debate rendeu, e outras pessoas demonstraram interesse em participar da organização do ato, que ainda não tem data para acontecer. Atualmente o grupo que organiza a marcha é formado pela professora de História Francismara Lélis, a instrutora de informática Natália Elisa, e as estudantes Juliana e Mariana de Freitas. No grupo, a opinião sobre o Estatuto do Nascituro é unânime: todas não concordam com a proposta. 

Para Juliana, a proposta do Estatuto marca um retrocesso nos direitos reprodutivos das mulheres. “O Brasil não pode dar, conscientemente, esse passo pra trás. O direito a abortar embriões anencéfalos só foi aceito ano passado e já querem bani-lo. Não é possível, muito menos aceitável, que com toda essa caminhada em busca dos direitos, o país dê um retrocesso desses”, avalia. 

O pagamento de pensão proposto pelo projeto é objeto de desconforto de Mariana e Francismara. As duas acreditam que “é uma vergonha” e Francismara ressalta “Como se todo o sofrimento fosse apaziguado com um salário mínimo por mês, e a mulher uma parideira sem vontade, sem autonomia, sem escolhas”. A professora acredita que o Estatuto “é o ápice do machismo e da misoginia institucionalizada que diz legislar pelo povo”. Segundo a teórica feminista e escritora chilena Margarita Pisano misoginia é uma expressão de ódio, desconfiança e desprezo às mulheres. A palavra é de origem grega, na qual misos significa ódio e gyné, mulher. 

A discussão sobre o projeto de lei abarca argumentos diversos, da ciência à religião, do feminismo à saúde pública. Se for assinado, as conseqüências que ele traz são irreversíveis as mulheres e seus corpos, que se perdem em meio a uma discussão filosófica e são encontradas nas mãos da violência, na lentidão do sistema jurídico e na dor do sistema público de saúde. O debate passa e a pergunta que fica é, será que os úteros serão castigados? 

“O Estatuto do Nascituro é uma coleção de violações aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”

Para compreender como o projeto de lei interfere nos direitos reprodutivos nós conversamos com a Consultora jurídica em direitos humanos e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) Sinara Gumieri.


Carla Duarte - Se o Estatuto do Nascituro for aprovado o Brasil viola algum acordo no âmbito dos direitos humanos? 

Sinara Gumieri - O Estatuto do Nascituro é uma coleção de violações aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres consolidados como direitos humanos em marcos internacionais adotados pelo Brasil, como o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995). 

CD - As restrições dos direitos das mulheres são mencionadas no projeto de lei? 

SG - O Estatuto não aborda qualquer das dimensões reais das violações de direitos sofridas atualmente pelas mulheres - o que inclui a falta de acesso universal a informação, educação e serviços de saúde sexual e reprodutiva integrais, compreensivos e de qualidade, a falta de acesso à educação sexual compreensiva para jovens e a violência de gênero contra meninas e mulheres. 

CD - Na sua opinião, como a mulher é vista dentro do projeto? 

SG - O projeto inferioriza mulheres como sujeitos morais e de direitos em um ciclo: nascituros terão diversos direitos priorizados, exceto, é claro, se nascerem meninas e se tornarem mulheres: aí estarão à mercê do Estado e dos homens, na condição de meros úteros ambulantes, obrigadas a manterem gravidezes inviáveis, indesejadas, frutos de violência sexual ou que arrisquem suas vidas. Ao absolutizar expectativas de direitos de não-nascidos, isto é, conjuntos de células com potencialidade de se tornarem seres humanos, o Estatuto não disfarça a tentativa de cercear direitos de mulheres reais de terem autonomia e fazerem escolhas livres, informadas e responsáveis sobre seus corpos, sua sexualidade, sua saúde, seus relacionamentos e suas vida reprodutiva (se, quando, como e que número de filhas/os desejam ter). 

CD - Na sua opinião, de que forma o Estatuto do Nascituro trata mulheres e meninas vítimas de estupro? 

SG - O PL trata meninas e mulheres como recipientes de fetos, apenas. Não há qualquer preocupação razoável como motivos pelos quais muitas meninas e mulheres têm dificuldades em denunciar a violência sexual que sofrem. 

CD - Que motivos seriam esses? 

SG - Eles envolvem a culpabilização das vítimas (que atribui a suas roupas, comportamentos, hábitos e etc a "origem" da violência, em vez de responsabilizar seus agressores pela violação da autonomia sexual das mulheres); a cultura do estupro (reproduzida na mídia e no dia-a-dia, inclusive institucionalmente, em delegacias e tribunais); o fato de que, na maioria das vezes, o agressor não é um maníaco desconhecido, mas sim alguém próximo, como o próprio namorado ou companheiro, um amigo ou membro da família; a falta de sensibilidade e ética no acolhimento e atendimento médico e psicossocial a meninas e mulheres vítimas de violência sexual; e a percepção ou sensação de que os agressores ficarão impunes. 

CD - Como o projeto trata a violência? 

SG - O Estatuto do Nascituro normaliza a violência sexual, faz dela parte de uma política pública espúria, que responde a mulheres e meninas vítimas de violência sexual com a perpetuação, pela via do Estado, da violência que sofreram. 

Nenhum comentário: